quinta-feira, 29 de março de 2012

A Viagem

Leia a partir do primeiro post: COMO TUDO COMEÇOU



Depois que decidi que realmente largaria, provisoriamente, minhas responsabilidades do Brasil para estudar medicina na Bolívia, fui em busca de fazer isso da melhor maneira possível. Mas como deixar tantas responsabilidades (dívida, trabalho, família - e filho -, planejamentos futuros e mais outras coisas) sem causar um reboliço?!

É difícil responder a pergunta acima de forma clara, mas posso dizer que simplesmente o fiz: conversei com minha família (e com a mãe de minha filha), dei um calote nas operadoras de cartão de crédito, nos bancos e nas lojas, vendi meu carro, pedi licença no trabalho, fiz as malas e parti! Antes, através de um contato que o Márcio me passara, um rapaz chamado Gillian, deixei certo a casa onde moraria para não ter que sair procurando lugar. Moraria na mesma casa que ele (Gillian) e outras pessoas que nem conhecia.

* No trabalho, aliás, tive exatamente três bota-foras em situações distintas, fiquei bêbado em todas. Inclusive, em uma delas, no plantão. (agora posso falar porque já pedi exoneração).


* Deixei, somente na conta corrente do cheque especial, cerca de 2 mil reais no vermelho; empréstimo consignado de, sei lá, uns 6 mil. Na Casas Bahia (pois é, comprava lá), sai devendo um notebook de valor de cerca de mil reais e de cartões de crédito, creio eu, devia estar a mais ou menos uns 5 mil... ou seja, tava fudido de tanta dívida.


Sai de minha casa no dia 15 de ***** de 20** e me dirigi ao aeroporto internacional de Guarulhos. Na saída de casa, depois de me despedir de todos, olhei para trás com aquela sensação de que somente o tempo poderia me trazer de volta... Que nada, voltei no mesmo dia, pois perdi o voo. Ter perdido o voo, além do prejuízo de ter de pagar pra remarcar a passagem, me trouxe outros transtornos que marcaram a minha "boas-vindas" a Santa Cruz de la Sierra como se segue:

O voo, no dia seguinte, foi tranquilo e desci no aeroporto internacional Viru Viru numa tarde, quase noite, quente e de poucos ventos. O Márcio (aquele) já estava aqui (ainda estou na Bolívia) e ficou de me buscar no aeroporto. Desembarquei e, já no desembarque, o procurei e nada de achá-lo; dei algumas voltas no saguão de desembarque e realmente não o encontrei. Pense num desespero! Pior que o Márcio não tinha celular e o único contato que tinha ali era o de sua namorada...

Lá estava eu, sozinho, num pais exótico (sim, é mesmo um país com algumas "peculiaridades"), longe de casa, com fome, com medo de ser roubado/deportado/expulso ou sei lá o quê... tentava pedir informações aos nativos, mas eles não me entendiam, ou fingiam não entender; naquele momento, descobri o quanto espanhol é uma lingua complicada e que não sabia, ao contrario do que imaginava, absolutamente nada daquele idioma.

Depois de 15 minutos, que mais pareceram 3 horas, resolvi ligar para a (na época) namorada do Márcio, a Andreia. Pedi que um taxista ligasse (esse entendia meu portunhol) e lhe passei o número dela; ele ligou e eu falei com ela... devo dizer que naquele momento senti um profundo alívio em falar em português com alguém (existia vida naquele planeta!). Ela disse que o Márcio já tinha ido me esperar havia algum tempo e que já deveria estar lá no aeroporto e, depois de eu sugerir, ela recomendou que eu viesse no taxi até a casa onde ela compartilhava com ele, afinal, se ele não chegara, é porque algo poderia ter acontecido e era melhor eu não ficar ali sozinho. Assim fiz. No caminho, observava a "ciudad"; nada de muito diferente do que estava acostumado no Brasil... na saída do aeroporto, propagandas de internet e telefonia móvel, carros, aparelhos celular e tive um pequeno alívio de saber que os bolivianos não viviam em tribos e que usavam roupas.

Quase uma hora depois, fui chegando ao destino. Andreia e Márcio moravam num condomínio fechado muito bonito e seguro com casas grandes e confortáveis. Havia guarita, muito verde com jardins e áreas livres com pequenas praças e áreas de lazer. Podia ver piscina, quadras poliesportivas e brinquedotecas; gostei do que vi e me perguntava se a casa onde moraria seria como uma daquelas tantas ali a minha frente.

Eu não tinha a moeda local, o Peso Boliviano, e a Andreia prontamente pagou o valor de 70bs ao taxista e fiquei de devolver-lhe, posteriormente, o valor. A casa onde eles moravam era muito legal! Tinha um belo jardim na entrada e uma ampla sala de estar, além de quartos grandes onde eles compartiam com outros moradores, também estudantes de medicina. Andreia, uma japa muito gente fina, me recebeu muito bem me deixando a vontade para ir ao banheiro e usar o computador para entrar em contato com o Brasil. Ali entrei na internet e falei com minha irmã, a Aline, que ficou admirada de eu já ter chegado e estar dando notícia tão rapidamente. Depois de tudo isso, chegou a hora de ir pra minha casa; a casa onde passaria os próximos 5 ou 6 anos de minha vida... Chamamos um outro táxi e me fui, com minhas malinhas e minha coragem, seguir meu destino... Era próximo e não devo ter rodado mais que 7 minutos quando entramos numa rua de terra e paramos numa esquina de outra rua, também de terra. Lá estava eu, na Calle los Pinos, número ****, Urbanização Cotoca, em Santa Cruz de la Sierra.

Desci do carro, olhei panoramicamente a casa e gostei de que vi; muros altos e com pregos enormes sobre ele, um jardim verde que via por entre as frestas do portão e um quintal aparentemente muito grande; só havia um problema: não havia ninguém em casa. Desespero parte 2.

Vista da frente da casa, pela rua.

Lateral da casa, mais a esquerda tem uma pequena horta
com plantação de cebolinha.

Fundo da casa. Muito espaço pra usos gerais. É assim em
quase todas as casas bolivianas; muito espaço.

O taxista se foi e fiquei ali por mais ou menos 20 minutos quando, finalmente, apareceu o Gillian. Era um garoto. Fala rápida e coordenada, me passou, em questões de segundos, como funcionava a moradia por ali (depois explico melhor), abriu o portão e a porta e me mostrou a casa, saindo logo em seguida me deixando com as minhas chaves.

Ali estava eu; sozinho de novo. A casa era grande, de fato. Havia muito espaço, muito mesmo, mas totalmente diferente daquilo que, a pouco, vi na casa do Márcio: estava agora na casa mais suja que havia visto na vida (e olha que já vi casa suja por ai). Muito pó, muito mesmo! Havia pó em tudo o que eu tocava; tinha, também, muitas apostilas velhas de semestres anteriores (tudo em espanhol), livros, objetos e embalagens esquecidas... no meio da sala, uma televisão sobre uma mesa feita de garrafas pet que, naquela hora (tentei ligar) não funcionava e, enquanto andava pra ver tudo, era atacado por teias de aranha que havia em toda parte; a impressão era de que, ali, não entrava ninguém havia meses. A cozinha era pequena com uma pia, uns talheres dentro de uma vasilha plástica improvisada, umas panelas velhas empoeiradas, uns copos sujos (muito sujos) e nenhum móvel mais. Meu quarto não estava diferente; não havia nenhum móvel, estava completamente vazio, exceto pelo armário embutido ali presente. Empilhei minha bagagem por ali, num canto e, depois de trancar o portão, todas as portas (haviam duas que entravam à casa) e as janelas, me deitei no chão sujo, ainda com a roupa que havia viajado e recostei a cabeça em uma das malas. Não consigo me lembrar ao certo do que senti naquele momento, mas me lembro que as lágrimas finalmente desceram.

Fazia um silêncio ensurdecedor ali sozinho enquanto pensava em um milhão de coisas. Lembrava de minha vida no Brasil, meus amigos, minha família (em especial a minha mãe) e, principalmente, milha filhota. Era o primeiro dia. O primeiro dia de mais de dois mil. O primeiro dia de uma nova fase que, naquela hora, eu não tinha certeza se conseguiria ultrapassar. Olhava o teto da casa, as paredes (paredes que, pensava, olharia por muito e muito mais tempo)... estava sozinho; totalmente sozinho e sem absolutamente nada ou ninguém. Foi a primeira vez que senti isso em toda minha vida.

Estava com muita fome, fazia calor (a temperatura é alta em meados de agosto, em Santa Cruz), estava cansado e com sono e logo adormeci ali mesmo no chão e, num susto, fui acordado ouvindo alguém abrir a porta e com o som de passos. Levantei assustado (estaria sendo roubado?) e, quando olhei pela porta, era o Gillian novamente. Ele me perguntou como eu estava, se precisava de algo, se estava acomodado e eu tive vontade de pular no colo dele e dizer que estava com medo, com fome, com saudade de minha mãe (enquanto escrevo, agora - muito tempo depois - dou risada, mas na hora foi foda), mas me detive e disse apenas que estava sem cama, sem colchão, enfim, e ele, depois de perceber minha situação e me explicar que não morava ali e sim com a namorada, apesar de ter um quarto alugado na casa (um quarto mobilhado anexado a casa, que eu ainda não tinha visto), me conseguiu um colchão que buscou em tal quarto. Me senti aliviado, afinal, não dormiria no chão. Ele me arrumou também um protótipo de travesseiro e, como eu já tinha lençol e cobertor, fiz minha "cama" e, antes que ele se fosse, perguntei-lhe como poderia fazer para comer algo, pois estava com muita fome. "Esta tudo (restaurantes) fechado", disse ele, mas disse que eu poderia comprar algo num bazar de frente a casa e, como eu não tinha grana local, ele me arrumou uns trocados para eu comprar algo; mostrou-me também um desses fogões elétricos de uma boca só (a primeira vez que vi aquilo) e me sugeriu fazer um miojo. Meu estômago quase surtou de felicidade. Aquele, pode-se dizer, foi meu primeiro momento de felicidade genuína naquele lugar.

Depois de um bom tempo tentando fazer o dono da mercearia me entender e finalmente comprar o miojo, me alimentei e fui dormir. Estava exausto e com sono, mesmo assim demorei a adormecer e, a cada pequeno som que ouvia, acordava assustado. Do lado do colchão a foto de minha filha sobre uma bolsa; ela sorria feliz.


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